A estrada menos percorrida

Postado: quinta-feira, 10 de junho de 2010 | Por : Yuri Padilha | Em:

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Gerson Borges


Sou um jornalista. Não, não um profissional da imprensa escrita, televisiva ou do rádio. Sou jornalista no senso da palavra inglesa para o registro diário (ou quase) da vida, "journal writing". Mantenho um diário (ou semanário, vá lá) aonde anoto minha jornada existencial. Comecei simplesmente registrando leituras bíblicas e seus significados, hábito da adolescência. O que Deus me falava ao coração ficava gravado nos meus cadernos. Logo percebi que era bom e espiritualmente animador tomar nota de frases significativas das minhas leituras.

Se era uma idéia boa, um insight inusitado, algo criativo ou perturbador da consciência, caderno nele. Desenvolvi o hábito da leitura sublinhada e anotada. Até a coisa virar terapia. No começo da vida adulta, fui percebendo que, ao escrever sobre acontecimentos diários, coisas pequenas, efemeridades e crises terríveis, desesperos, a alma respirava aliviada. O coração (re) animava-se. A vida voltava aos trilhos do comum e do extraordinário. E tudo isso debaixo do olhar afetuoso de Deus, a cada passado da jornada.

Jornada.

Esse é mesmo um nome adequado para a Vida Espiritual. Um passo por dia, um dia por passo e a vamos caminhando. Escrever sobre o itinerário, as estradas, os caminhos e descaminhos da jornada é quase a jornada em si. Christina Baldwin, em seu livro "Life’s companion", concebe a prática de manter um Diário Espiritual como "uma busca espiritual". Penso que Anne Frank, ao registrar seus pensamentos e sentimentos, suas angústias e pavores do horror nazista no seu Kitty, nome que dava ao seu diário, de modo algum imaginava que, por ter sido preservado por Miep Gies, ao ser publicado em 1947 chegaria aonde chegou, traduzido em 68 línguas e um dos livros mais lidos do mundo. O que ela queria, nas palavras de outro sobrevivente da barbárie de Hitler, Victor Frankl, era "um desejo e uma vontade de sentido".

Sentido.

Escrevo Diários não porque a minha vida faz sentido, mas para dar sentido à minha vida. Religião pode ser muito irrelevante e sem significado, denuncia a obra-prima de Thomas Merton, "A montanha dos sete patamares". Nesse livro, extremamente íntimo e pessoal, o escritor e monge trapista narra o vazio da sua infância e adolescência como protestante nominal. Aliás, Merton é um dos meus jornalistas preferidos. Seus Diários são uma vigorosa e apaixonada mistura de poesia e oração. O sinal de Jonas é um exemplo: "Nada deve atrapalhar um monge de orar, nem mesmo escrever um livro", ele diz com gostosa ironia. As duas coisas se confundem e se misturam o tempo todo quando quando se mantém um Diário Espiritual, a narrativa pessoal e a oração.

Oração.

Quando escrevemos nossa oração, a exemplo dos salmistas, orar é diferente. As frases feitas, as expressões religiosas vagas, vazias e vãs podem, afinal, ser percebidas. Pensamos no que escrevemos ainda que nem sempre escrevamos o que pensamos, já que, como diz Henri Nouwen, outro ardoroso escritor de maravilhosos Diários, "escrever assim é um ato de confiança”. Não sabemos aonde a caneta vai nos levar. Mas nos submetemos aos fluxos da alma, às correntezas do coração e da mente, ao fruir da vida interior. Os Diários de Nouwen, como "The Genesee Diary", em que ele relata de modo imensamente inspirativo sua experiência sabática num Mosteiro Trapista (sim, Nouwen foi influenciado diretamente pela literatura e espiritualidade, arte e devoção de Merton), ou "O caminho do amanhecer", sua narrativa da renúncia do cargo de professor titular em Harvard para cuidar de deficientes na Arca, no Canadá.

Luz e sombra. Fé e dúvida. Paz interior e angústia espiritual. Isso tudo nos é comum. O que não é comum é desfrutar dos benefícios que brotam no hábito de mapear esses sentimentos e experiência numa narrativa.

Narrativa.

Lucy Shaw, escritora anglicana que admiro, professora do Regent College e amiga próxima de Eugene Peterson, uma vez proferiu uma conferência intitulada "A Palavra Narrada: As Implicações Teológicas da Estória" ("A Narratable Word: The Theological Implications of Story") e, nessa criativa palestra, Shaw ensina:

"Narrativa é uma palavra originalmente derivada da expressão latina noscer - conhecer – e um outra com a qual se relaciona, gnarus, conhecer, saber algo. Talvez seja, portanto, outra forma de dizer que estórias, narrativas, é o modo por meio do qual tomamos conhecimento do mundo".

Sim, é isso mesmo. Ao narrarmos nossa vida, tomamos conhecimento dela, entramos em contato com nossa realidade e notamos como estamos inseridos numa narrativa maior, humana e divina. A Bíblia é narrativa e poesia. Muito pouco na Bíblia é discussão, defesa argumentativa, etc. Talvez as Cartas de Paulo. Mesmo assim, sua criatividade e inteligência, inspiradas pelo Espírito Santo, fazem da conversa teológica um coisa muito, muito bela – e pessoal. Paulo faz uma teologia na primeira pessoa visando a Comunidade. Paulo, ao contrário de muitos filósofos e teólogos, não é uma abstração, é uma pessoa.

Pessoa.

Somos tão complexos, não é mesmo? Podemos ter tanto know how profissional, tantos saberes e competências técnicas, mas e quanto à nossa alma, o que sabemos? Num tempo quando o neo-ateísmo de Dawkins, Hichtens e Harris, entre outros, zombam da idéia da espiritualidade cristã ao afirmarem que a alma é a mente e a mente é química e eletricidade facilmente mapeada pelo computador medicinal, pergunto: o Homo Sapiens, o " Home-que-sabe", nós, da sociedade da informação, sabemos quem somos? Basta ler o jornal (no outro sentido) e responder que... não.

Buscamos a resposta fora de nós. Quem nos define, por exemplo, é o consumismo. O homem de hoje é aquilo que ele consome. Basta olhar ao redor e ver outdoorsambulantes a serviço das grandes corporações. Outro dia dei risada ver uma foto do presidente Lula ao lado de Fidel Castro, que usava um casaco da ...Nike. Sabe o que é o homem, eu e você? Contradição.

Contradição.

Ser inimigo do que se diz. Contrariar o que se afirma. Dizemos que amamos. E matamos uns aos outros sem parar. Dizemos que cremos em Deus. E vivemos como se Ele não existisse. Dizemos que a natureza é boa e bela. E a destruímos pouco a pouco – ou muito a muito – como, no século passado e nas últimas décadas.

Só me dou conta da imensa contradição que eu sou quando olho para dentro de mim. Isso se dá de modo único quando escrevo meu dia-a-dia, minha noite-a-noite, quando descrevo e narro minha jornada. Narrar, nas orações simples do meu diário espiritual, tristezas, frustrações, conquistas, alegrias, chegadas, partidas, vitórias e vergonhas – eis o que mais me aproxima de Deus, de mim mesmo e dos outros.

O ato de auto-narrar a minha vida pode ser dito de outro modo pelas pavras de M. Scott Peck, psicanalista cristão: "a estrada menos percorrida". Temos medo do que se revela nas páginas de um caderno sincero. Temos medo do que se esconde nos nosso pesadelos ou mesmo nos sonhos bons. Mas, por exemplo, escrever os sonhos assim que se acorda é uma grande ferramente de auto-conhecimento, como me ensinou meu querido Osmar Ludovico.

Tenho dado um passo para frente e dois para trás nessa história. Tem épocas que nem sem onde foi parar o tal caderno. Outros momentos, eu encho páginas e páginas, num frenesi catársico que só Deus e eu testemunhamos. Mas eu não vivo mais sem meus diários. Meus diários mudaram a minha vida. (D)Escrevo meus problemas neles e deixo descansando. Sem narrar o que a vida me dá e me toma, o que eu gozo ou perco, o que eu experimento da Graça dentro da graça dentro da graça, como viver? A Salvação é uma jornada que começa agora.


Fonte: http://www.cristianismocriativo.com.br

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